‘Memórias Fósseis’ ou Memorial do Tempo


Algo de mim está inscrito nesses poemas. É essa a impressão que o leitor de “Memórias Fósseis” terá. O autor, Weslley Almeida, apropria-se dos registros afetivos, tão comuns a todos. Em seguida, devolve-os embelezados pelos versos. E o faz mediante uma espécie de viagem que tem como veículo o tempo.

Esse tempo – objeto e sujeito – reveste-se de múltiplas formas. Ele pode representar o amanhecer. Interpretar cigarras anoitecentes. Em um verso, transvestir-se de pai do poeta. Em outro, ser o poeta que é pai. O avô também marca presença. Nem as árvores escapam às alusões.

Tal versatilidade é revelada em outros momentos do livro. A palavra flor, por exemplo, permite dividir o protagonismo com inseto e passarinhos em um poema: “Aninha-se em passarinhos / vive inseto em flor / trança terno com eles o teu amor” (trecho de Canto para Assobio). Em outras cenas, porém, não há acordo: brilha única, absoluta, como a refletir uma plateia de pupilas: “Enxerga a flor / com toda tua retina / Apalpe-a / com toda pálpebra tua” (trecho de Ocular).

Um dos pontos de passagem é o poema Temp(l)o, talvez onde habite a pedra de Mia Couto, a qual, por destituir-se de idade, não tem espera, nem procura ser esperada. Mas nunca inerte: na poesia weslliana, todos os períodos se convergem para um É-SER intenso, a monopolizar a gramática da existência, “no grude gesto do tempo”.

Nota-se que o traçado de Weslley Almeida é simples. Não entenda esse termo como a variante simplista. Vale, nos versos do poeta baiano, o mesmo que comentou Jorge Luís Borges, para quem inexiste a facilidade quanto às apreensões da realidade, pois todas as coisas “postulam o universo, cujo atributo mais notório é a complexidade”. O que há, em alguns seres, é o dom de compreender esse universo e de transformá-lo durante o exercício poético. O autor de “Memórias Fósseis” possui esse olhar atento e natural ao cotidiano, aos instantes, aos aparentes lugares-comuns.

Quem acompanha sua carreira literária, reconhece suas cores nos pequenos gestos. Naquilo que passa despercebido ao olhar trivial. Como se verifica em Canto dos Galos:

Eu alcanço as manhãs
no canto dos galos.
Os seus gemidos
levantam o sol.
Despertam
meus ouvidos soníferos

             e o
             olhar
             pro arrebol

Outra característica peculiar de Weslley Almeida e que em “Memórias Fósseis” também se observa são os arranjos, os deslocamentos calculados, a redistribuição das palavras e dos versos. Um acabamento sutil da forma contribuindo para a mensagem a ser transmitida.

Encontra-se tal recurso, por exemplo, no poema Poucos Segundos. O tempo – matéria-prima das memórias – interage com a crítica social. Os dois aspectos reconfiguram a linguagem quando ocorrem intervenções nas disposições dos versos:

Em poucos segundos
morre
uma pessoa de fome.

Uma pessoa
de fome
morre

Uma pessoa.

A morte em verso solitário, em palavra única, a mimese da vida abreviada: “morre”. O indivíduo inexistindo a cada estrofe, até que, na última, sucumbe à própria realidade, solitariamente. Problematização das mazelas banalizadas pela recorrência e pela insensibilidade do olhar coletivo.

Semelhante processo ocorre em Famigerado:

Ninguém atentaria
pra ele
não fosse

o voo


            vigilante


            dos urubus

A palavra no lugar mais elevado e mais à esquerda representa “o voo” das aves de rapina. A alteração da altitude e o avanço em “vigilante” levam-nos a embarcar no poema, como um atento processo de aterrissagem. Por fim, o solo e o encontro com os corpos, vítimas da inanição. A grafia e a ocupação consciente dos espaços a serviço do sentido.

Os dois títulos supramencionados compõem a sessão “Produto Homem” (a terceira do total de seis). Mediante esse espaço, Weslley Almeida lança luz poética sobre a realidade “fria, crua, nua” da nossa época.

A poesia tem, efetivamente, essa propriedade de alcançar regiões da alma, geralmente inacessíveis. Entretanto, não há necessidade de que o toque ocorra com as costumeiras formalidades:

POESIA

Poesia é coisa séria
mas às vezes a gente entra brincando
ensaiando a alquimia das palavras
no construto dos sentidos.

Separando estrofes
como arvoredos os galhos

subindo troncos
como frutos por espinhos

mergulhando em rizomas
tal qual da copa
os orvalhos 

Contemplamos ainda o poeta brincar com figuras de continuidade. A paternidade do sujeito lírico é compartilhada pelo progenitor e pela natureza. Tanto um quanto o outro são repositórios de lembranças. De muito admirar o Pai-Sagens, aprendeu outro modo de reconhecer o tempo: “A benção, pai. / O relógio que consertas / é tecelão / a fiar os fios do tempo. / Mas gosto de olhar as horas / pelo trajeto do sol.”. Já os Pais Vegetais ensinaram-lhe a liberdade quase alada dos movimentos: “O pé de manga e de goiaba / na infância / eram meus pais vegetais. / Andava neles / como quem voava.”

Distraídos nas paisagens, nem nos damos conta de que a viagem pelas páginas do livro chegou ao fim. A última página, no entanto, não representa o ponto final. No nosso paladar, ainda ficará registrado o “gosto do tempo”. Nas suas “trilhanças”, seguiremos construindo novas memórias, catando “as lembranças embaçadas do porvir”.´ (Texto escrito por Valdeir Almeida).

Weslley Almeida é vencedor de diversos concursos literários. Um deles é o Prêmio Sosígenes Costa, que redundou na publicação do livro “Memórias Fósseis”. O mencionado livro está disponível gratuitamente em PDF, neste endereço. Para falar com o autor, entre em contato mediante seu blog ou seu e-mail: weslleymoreiralmeida@gmail.com.

2 comentários:

  1. Val, meu caro amigo, tenho a honra de ter amizade com alguém tão perspicaz, de olhar aguçado e sensivsel diante da vida, da literatura e da poesia! Me reencontrei com meus versos aqui e aprendi muito sobre minha própria poesia. Além de escritor, tenha certeza, você é um crítico de mão cheia: parabéns! E obrigado!!

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    1. Amigo Weslley,

      Obrigado pelas suas observações. Quando o conteúdo do livro me agrada, a motivação para escrever sobre ele é natural. O “Memória Fósseis” é um exemplo disso. Parabéns por mais um trabalho, amigo, e pelos inúmeros prêmios que você vem conquistando!

      Abraços!

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